segunda-feira, 7 de setembro de 2009

1º fase do Concurso - CONCLUÍDA (ufa)

More than words

-“Como é que te sentes hoje?” - perguntou-me uma voz doce e eternamente convidativa.
Sorri, como seria de esperar. A seu lado, sentia-me em casa.

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“Tens mesmo certeza da tua decisão?” - perguntou, no seu tom habitual de desdém.
“Absoluta” - respondi, sem me afectar minimamente.
Abracei-a, dando forma a um hábito completamente artificial e mecânico, entrando, de seguida, para o táxi que me levaria ao aeroporto de Phoenix.
Apesar do percurso até ao aeroporto ser pequeno, este tornava-se insuportavelmente demorado quando pensava em pormenores com o poder de transformar o quotidiano. Sempre tivera medo destes pequenos momentos em que a minha consciência se apoderava, a pouco e pouco, da minha mente, derrotando o lado racional que até aí a dominara. Nesse preciso instante, as tentativas de cumprir o lema que permitira a minha sobrevivência ao longo dos anos foram falhadas; todas emoções acumuladas e constantemente reprimidas encontravam-se agora à flor da pele e inundavam-me o corpo, como se este tivesse sido mergulhado numa piscina de água gelada. Fui transportada para uma outra realidade, onde inúmeros flashbacks insistiam em permanecer na minha mente. Nunca tentara, sequer, negar; o significado da palavra ‘família’ jamais existira em mim e, presentemente, tinha sérias dúvidas que algum dia o pudesse compreender inteiramente. A mulher que me criara e que sempre se auto-denominara minha mãe tornara-se, desde muito cedo, alguém com uma personalidade fraca…demasiado fraca. O processo de divórcio, que acontecera quando eu tinha apenas 2 anos, deixara-a debilitada física e psicologicamente, ao ponto de não ser capaz de dar carinho e afecto à sua filha, a única que nunca tivera culpa de pertencer a este mundo. Apesar de 15 anos de maus tratos, sobretudo psicológicos, ela sempre fora incapaz de os admitir, alegando que me amava incondicionalmente, mesmo sem merecer. Todos os anos, sempre que eu sentia que não conseguia suportar nem mais um dia assim, alguém com uma capacidade de amar infinita recorria em meu auxílio.
-“Menina? Chegámos” - avisou o condutor, apontando obviamente para o colossal edifício que se erguia do lado direito.
O meu estado de completa abstracção fora bruscamente apagado, dando lugar a um de carácter racional. Passei, intuitivamente, as mãos na face e algo molhado me chamou à atenção; estivera a chorar.
-“Obrigada” - respondi, fazendo um esforço para a minha voz não tremer.
Abandonei o táxi e, em menos de duas horas, Phoenix não passava de mais um ponto preto a desaparecer, gradualmente, no horizonte.

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Sempre que visitava a minha avó Samantha, em Forks, sentia que dava mais um passo em direcção à felicidade. Era inevitável sorrir e sentir-me verdadeiramente em casa quando pensava que, dentro de minutos, veria a única pessoa que sempre me apoiara ao longo dos anos e pela qual sentia um carinho imenso. À medida que percorria a longa estrada que tinha como fim uma solarenga casa de campo, os meus passos tornavam-se casa vez mais urgentes e espaçados, na ânsia por chegar a casa; simultaneamente, a minha mente tornara-se aberta, absorvendo e sentindo todos os pequenos movimentos que aconteciam à minha volta. Ao longe, música nostálgica e colorida preenchia o espírito das pessoas em redor, relembrando-as das inúmeras fotografias a preto e branco perdidas nos recantos de suas casas. Momentos inesquecíveis encontravam-se presos, talvez eternamente, em molduras de pano desbotadas, sem que ninguém fora do habitual os vivenciasse uma última vez. Novamente, não me enquadrava na maioria.
-“Bella!” - chamou-me uma voz familiar, quase melódica - “Bella, querida!”
O seu rosto enrugado iluminou-se com um sorriso, imitando o meu. As memórias desapareceram, o passado desapareceu, o mundo desapareceu; a partir de agora, apenas o futuro interessava.
-“Avó!” - a minha voz tremia, devido à quantidade de emoções que me assolavam.
Depois, como uma criança que vê algo pela primeira vez e lhe quer tocar, corri para um abraço apertado. Naquele momento, qualquer olhar trocado dispensava palavras para ser entendido ou sentido; apenas as lágrimas de felicidade corriam pelo rosto a baixo, porque o resto do mundo tinha parado no tempo.

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Os dias passaram e a angústia de existir que me assolava todos os dias desaparecera para sempre. Sem que nenhuma de nós se apercebesse, estabelecera-se uma rotina saudável: A manhã era ocupada com longas caminhadas pela floresta, onde tinha uma oportunidade única de ver e observar a natureza como nunca antes o fizera; à tarde, depois de uma revigorante sesta, sentávamo-nos na sala e recordávamos, através de fotografias e cartas de amor nostálgicas dos bons e velhos tempos. Foi exactamente numa tarde igual a tantas outras que a minha vida mudou por completo.
-“Bella?” - chamou, tirando os óculos como sempre fazia quando pretendia iniciar um assunto sério.
-“Sim?”
-“Gostava de te perguntar algo” - disse, com firmeza.
-“Claro”
-“Já tens 17 anos…” - a sua voz hesitou com medo da minha reacção - “…para a semana fazes 18…” - a frase permaneceu solta, sem continuação.
-“Sim ‘vó, eu sei” - confirmei com um sorriso.
-“O que significa que já podes tomar as tuas próprias decisões…com ou sem o consentimento da tua ma…” - suspirou - “…da mulher que te cria” - disse, por fim.
-“‘Vó” - principiei - “por favor, vá directamente ao assunto” - pedi, ainda a sorrir.
-“O que eu te quero perguntar é se…se queres viver aqui, em Forks, comigo” - concluiu, finalmente.
O impacto que a pergunta teve em mim jamais poderá ser descrito na sua totalidade. Primeiro, o choque percorreu cada partícula constituinte do meu corpo, fazendo-me tremer; quase simultaneamente, o entendimento pleno da felicidade que tal decisão me traria fez-me pular da cadeira e abraçá-la com uma força extrema. As lágrimas brotavam compulsivamente sem as conseguir ou querer controlar. A seu tempo, consegui soltar um ‘sim’ sentido e sincero.
-“Samantha, tenho…” - iniciou uma voz que me era completamente estranha - “…oh! Desculpem.”
O abraço fora desfeito e as lágrimas controladas; olhei uma vez mais para o rosto da minha avó e virei-me, vendo, pela primeira vez, a segunda surpresa do dia.
-“Ricardo, não peças desculpa” - disse, sorrindo - “Esta é a tua…minha neta, Bella. A partir de agora vai viver connosco” - informou, rejubilando de alegria.
Não tive oportunidade de me levantar e cumprimentá-lo; ele fora mais rápido.
-“Olá” - respondi, verdadeiramente embaraçada e com a perfeita noção que o sangue afluía agora para as minhas bochechas.
Os meus olhos encontraram os seus e aí permaneceram, durante infindáveis segundos; depois, cedo demais, um som completamente alheio à situação em que me encontrava quebrou o encanto. Virámo-nos ambos para a janela que se encontrava do nosso lado direito e rapidamente descobrimos a razão da interrupção: uma buzina de um carro que insistia em ser ouvida, repetidamente.
-“Sempre no momento certo” - murmurou entre dentes - “Samantha, tenho de ir com o Miguel à cidade, volto a tempo do jantar” - avisou, beijando a minha avó na face.
-“Quem era?” - perguntei, num misto de curiosidade e estupefacção.
-“Ele é este” - disse, apontando para uma moldura antiga.
Até então, nunca tinha reparado na sua existência, apesar de, ao longo dos anos, ter olhado para ela inúmeras vezes. O cenário era simples e belo: uma rapariga e um rapaz a brincarem às escondidas num parque infantil. Entre eles existia amizade e cumplicidade em forma de inocência que nunca deveria ter sido interrompida.
-“E esta és tu” - afirmou com um sorriso sincero e nostálgico.
-“Eu?” - perguntei, surpresa - “Não me recordo de tirar esta foto”
-“É normal, vocês eram muito pequenos…e foi na altura do divórcio dos teus pais” - esclareceu, com pesar.
-“Não me lembro dele, sequer”
Subitamente, senti-me triste. Até aquele momento, sempre dera graças por não me conseguir recordar de grande parte da minha infância, já que esta fora passada em sofrimento. Perante esta descoberta, o sentimento mudara; agora, metade da minha vivência tinha sido roubada.
-“Ele é muito parecido contigo, quase como se nunca tivessem afastado. Não te preocupes, vais ter tempo para o conhecer” - tranquilizou-me, tendo total acesso a todos os meus receios.

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Com o passar do tempo a vida tornara-se fácil e amistosa. Ao início, as tardes eram preenchidas por perguntas rotineiras e feitas de modo a quebrar o constrangimento existente. Depois, quase sem que nenhum de nós se apercebesse, o mundo passara a girar à volta da nossa infância e do tempo perdido.
A pouco e pouco, o seu sorriso e o seu humor habitual começaram a significar mais para mim do que simples provas de amizade. Estar ao pé dele passara de um mero capricho a necessidade. Assim, todos os dias, quando descia as escadas de casa e via o seu sorriso, o meu estômago dava uma cambalhota e o meu coração disparava freneticamente. Nunca antes a palavra ‘felicidade’ fora tão sentida e vivida como agora; com eles, sentia-me em casa.
Foi numa manhã igual a tantas outras que a minha vida se alterou, novamente. Cheguei sozinha de longa e necessária caminhada e deparei-me com um cenário promissor: a minha avó e o Ricardo sentados na sala, de cabeça baixa, sem proferirem uma única palavra.
-“Que se passou?” - perguntei, com a preocupação a invadir-me a cada segundo que passava.
-“Há algo…” - a sua voz fez uma pausa, de modo a ganhar coragem - “há algo que te temos de contar”
-“Não entendo”
- disse, abanando a cabeça.
-“Senta-te, por favor” - pediu a única voz masculina na sala
Até então, não reparara que os seus olhos transmitiam súplica e sofrimento. Perante isto, senti uma vontade súbita de o abraçar, mas resolvi aceder ao seu pedido.
-“Bella” - principiou a minha avó - “o que eu te vou contar não será fácil de dizer e muito menos de entender; mas peço-te, acima de tudo, que me dês a oportunidade de explicar o que realmente se passou”
Acenei com a cabeça de forma positiva, já que as palavras começavam a falhar.
-“Recordas-te de eu te ter dito que tu e o Ricardo eram muito semelhantes, apesar de terem sido criados em condições completamente diferentes?”
-“ “Ele é muito parecido contigo, quase como se nunca tivessem afastado”
”- citei-a - “Sim, lembro-me.”
Um suspiro quebrou a tensão que existia na sala; até aí, apenas os meus batimentos cardíacos acelerados se faziam ouvir.
-“O que eu te disse…pode adquirir facilmente outro sentido” - confessou, finalmente.
-“Continuo sem perceber” - disse, confusa.
-“Quando tinhas dois anos foste separada do Ricardo” - a sua voz tremeu e os seus olhos ergueram-se, encontrando os meus; depois, com a réstia de coragem que tinha, prosseguiu - “foste separada do teu irmão”
Apesar do impacto ter sido instantâneo, apenas segundos depois o meu corpo assimilou na sua totalidade a informação dada. Ao contrário do que seria de esperar, não fui capaz de chorar; apenas permaneci estática e em choque, a olhar para o vazio, sem proferir qualquer palavra. O mundo abrandou o seu ritmo normal e eu acompanhei-o.
Depois de segundos que se assemelharam a horas, reuni as forças necessárias para fazer uma última e derradeira questão.
-“Porquê agora?” - perguntei, num murmúrio quase inaudível.
O silêncio que até aí predominara prolongou-se indefinidamente.
-“Porquê agora?” - perguntei novamente, mas num tom mais audível.
-“Porque te amo” - respondeu, simplesmente.
Estas três palavras despertaram em mim a energia que eu precisava para fugir daquela situação. Antes que qualquer um se apercebesse, já abrira a porta de casa e corria em direcção à floresta, sendo seguida apenas pelos inúmeros chamamentos, que rapidamente cessaram.

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A floresta cerrada que se encontrava à volta da clareira exercia um efeito sufocante, como se me pretendesse engolir a qualquer instante. Eram frequentes as largas e altas árvores que realmente atingiam o céu, sendo banhadas desde cedo por raios de sol dourados. Em contrapartida, eram raros aqueles que alcançavam o solo e tinham a capacidade de produzir vida; maioritariamente, o interior da floresta era húmido e rico em vegetação rasteira, criando um ambiente inóspito e predominantemente verde. Estática e silenciosa, a natureza aparentava permanecer inalterada no tempo.
De certa forma, o meu estado de espírito enquadrava-se perfeitamente no meio que me envolvia. Pela primeira vez em 17 anos sentia que finalmente encontrara o sítio certo onde estar e ser feliz. Do nada, em espaço de segundos, esse porto seguro fora-me roubado, deixando-me sozinha e abandonada.
A pouca luz presente na floresta tendia a desaparecer, indicando o final de mais um dia. Com este pensamento em mente, cheguei à conclusão que, talvez, ao contrário da natureza, o meu destino pudesse ser alterado. Decidi reflectir com clareza.
“Eu amava o meu irmão” - pensei, encarando o óbvio - “E ele amava-me.” Numa qualquer outra situação, o meu coração teria batido freneticamente de alegria. Agora, a minha mente não conseguia esquecer o lado racional e entregar-se livremente às emoções.
“Fora essa a razão que o levara a contar, acima de tudo” - prossegui - “Ele queria que eu fosse livre de tomar as minhas próprias decisões sabendo a verdade”
A conclusão a que eu chegara permitira-me encarar o problema de um ângulo completamente diferente.
“Apesar dele ser meu irmão, eu nunca o vira como tal” - concluí, chegando, finalmente, a um entendimento total sobre o assunto. Todos os meus sentimentos e angústias podiam ser condensados nesta pequena frase. Sorri para mim mesma. Afinal, nem tudo estava perdido; bastava eu querer.

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A luz embatia na minha cara, como forma de anunciar a chegada de um novo dia. A pouco e pouco, à medida que o sono me abandonava, consegui distinguir uma silhueta à minha beira.
-“Como é que te sentes hoje?” - perguntou-me uma voz doce e eternamente convidativa.
Sorri, como seria de esperar. A seu lado, sentia-me em casa.

1 comentário:

  1. Omg. Lindo, simplesmente... lindo. Adoro tudo: a maneira como escreves, a descrição, a história, o drama (eu sou viciada em dramas :p)

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